segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

NOS PASSOS DO PAI DE FERNANDO PESSOA, 1888

                                                                                                                   MARINA TAVARES DIAS

« Há um homem magro que sai de S. Carlos e acende o charuto, aproveitando a brisa amena libertada pelas luzes a gás do foyer. O tempo está incerto entre duas nuvens densas. A viagem até à Rua dos Calafates desmotiva-o deveras, agora que lhe apetecia mergulhar directamente na porta do prédio mesmo ali em frente. Mas tem uma crítica para entregar, escrita de véspera como combinado, e veio à segunda récita só para recapitular pormenores mais equívocos: a voz da soprano que fraqueja no momento preciso em que o coro sobe de tom, o olhar indeciso do maestro sobre uma plateia que não conhece. Um mundo cosmopolita tão distante da casa em frente, tão distante do choro em torvelinho do filho pequeno, do ruge-ruge de saias da velha mãe quase louca, dos gritos das criadas sempre que a peixeira passa, do cheiro a canela a repousar no doce de abóbora, em travessas, pelos aparadores. Há um mar de calçada entre a porta de S. Carlos e a vida real por trás das outras janelas do largo. Num certo sentido, pensa, fica mais perto a Rua dos Calafates. Fica mais perto a Redacção do Diário de Notícias. Arrima o ânimo e desvia o olhar da fachada. Resolve em definitivo que vai entregar os papéis hoje, em vez de passar pelo jornal logo de manhã. Tomará pelas escadas sobranceiras à pracinha, na direcção do Largo das Duas Igrejas, sabendo-se antecipado em relação à onda humana que, dentro de minutos, inundará o Chiado. [.../...] » 

(continua no livro)

MARINA TAVARES DIAS.

livro: LISBOA NOS PASSOS DE PESSOA


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