MARINA TAVARES DIAS
no volume 9 da
LISBOA DESAPARECIDA
(2007):
«Muito pouco do que serviu a produção do primeiro volume da Lisboa Desaparecida, em 1987, subsiste hoje em dia. Foram-se as laudas para mandar compor o texto, as 'saídas' em papel para emendar as primeiras 'gralhas', as fotocópias ampliadas das fotografias que entravam, o cesto de papéis para onde cortava os bocados de prosa excedentários, as enormes maquetes em que, folha a folha, linha a linha, eu e a paginadora emendávamos, coligíamos, apurávamos, marcávamos espaços de fotografias e de legendas. Foram-se os filetes da tipografia, a raspagem dos fotolitos, as emendas à mão nos originais mais estragados e os remendos nas chapas riscadas. Até a máquina de escrever Hermes Baby, com o seu teclado HCEZAR orgulhosamente nacionalista, deve ter ficado em alguma das muitas moradas que entretanto percorri.
Agora, os textos seguem por mail e as fotografias são digitalizadas. Pagina-se no computador com o último programa disponível. O resultado final sai em cd: ficheiros com uma terminação qualquer. A produção dos livros perdeu definitivamente a graça. Parece que não se põe as mãos em nada. Nada, excepto esta mesa onde, como em 1987, continuo a estender as fotografias para cada texto. Esta mesa desmontável, de tampo em fórmica amarela, com pés de alumínio que se dobram para dentro e um design de 1970 subitamente no pino da moda. Sempre que estou a acabar os textos para um livro, monto-a ao lado da secretária e recomeço a espalhar-lhe as fotos em cima. É a 'mesa da paginação' de todos os volumes da Lisboa Desaparecida. Passo a apresentá-la aos leitores: esta é a mesa que vos liga, sem que o soubessem até agora, à minha Feira Popular.
Tal como todos
os miúdos lisboetas, também tive uma versão exclusiva do imenso universo da
Feira Popular. A minha versão incluía o carrossel de dois andares e excluía os
carrinhos de choque, incluía o comboio fantasma e excluía o poço da morte,
incluía as farturas e excluía a sardinha, incluía ir ao Café de Pretos e
excluía passar pelas loiças, incluía os furos e excluía as rifas das panelas.
Mas houve uma excepção, por volta de 1970. A voz irritante do megafone
anunciava qualquer coisa no «stand» das panelas que tinha a ver com 'brinquedos
da moda'. Lá terei arrastado os meus pais, lá teremos comprado duas ou três rifas,
lá teremos dado as voltinhas necessárias para fazer tempo e saber se eram ou
não premiadas. Nessa longa noite, voltámos para casa de metro com esta mesa
toda janota, não tão pequena como isso, de pernas desdobráveis e um amarelo
então no rigor do bom gosto vigente. Perante tal prémio pela módica quantia de
cinco escudos, a minha tia resolveu logo ir à Feira na noite seguinte, 'para
ver se a sorte grande também me sai a mim'. Ainda estou para saber como
conseguiu que lhe saísse uma mesa igual, em azul.
Ao longo do
resto da infância, a mesa amarela cruzou-se comigo lá por casa: ora ajudava as
criadas a descascar batatas na cozinha, ora exibia as conchas trazidas da
Caparica no Verão, ora era suporte do presépio de Dezembro, ora espreitava lá
do canto do quarto, pelo canto do tampo intensamente amarelo. Cresci com ela, 'a mesa das rifas é tão pirosa', e fui ganhando posse do seu pequeno território
à medida que os adultos resvalavam para outras modas: o laranja dos anos 70, os
dourados dos anos 80. Parti com ela pelas casas fora, numa cidade cada vez mais
vazia e triste, até o poiso de onde vos escrevo. Eu, autora de um título que
celebra 20 anos – passa a ser pleonástico dizer-vos que estou velha – e ela,
mais desbotada mas ainda amarela, com ferrugem nas dobradiças, bamba de um dos
lados e muito útil ainda. Aqui, as duas a partilhar a caneca do chá, com as
fotografias perigosamente próximas. Se não confiasse nestas dobradiças tão
usadas, neste monta-desmonta sempre categórico, sempre a meu mando, confiaria ainda
as minhas Lisboas Desaparecidas à mesa das rifas da Feira Popular?
Este volume
nono parte, pois, de uma Lisboa Desaparecida pessoal. Parte desta tampa
amarela projectada no tempo e no espaço como um objecto cujas origens são
incertas e cujo passado se perdeu de vista. Esta é a primeira Lisboa
Desaparecida que escrevo após o encerramento da Feira Popular. Por isso,
começo agora a partir da banca de trabalho. Não preciso de ir mais longe para
lançar o tema sobre o qual escrevo. Uma feira enorme, uns olhos de criança a perderem-na
de vista, a mesa de tampo amarelo e o monte de fotografias. Cá vamos no
carrossel do tempo. [.../...] »
(CONTINUA NO LIVRO)
Óptimo trabalho!
ResponderEliminarContinua, Marina, continua!
ResponderEliminarE, OBRIGADA.