em LISBOA DESAPARECIDA,
volume VIII
de MARINA TAVARES DIAS
«Já é altura de termos um capítulo leve – mesmo quando o jantar é pesado; e consensual – mesmo para quem não queira engordar. Falemos, pois, do mais glosado tema lisboeta: cozinha, culinária ou gastronomia alfacinha. Deixo escolha da palavra ideal à erudição do leitor. Até hoje, através da bibliografia alusiva, ela depende menos de diferenças entre livros do que da data de edição. Existem mesmo textos que, morto o autor, mudam de título para versões mais modernas e intelectuais*.
Como se dizia antigamente, «a conversa chegou à cozinha», ou seja, a elite está hoje na dita como outrora no salão. Veja-se a quantidade de artigos sobre como decorar esta parte da casa que, bem à americana, cada vez tende mais para o estilo sala-de-estar. A frase de Alexandre Dumas é mais democrática e mais actual do que parece: «As bestas devoram, os homens comem e os filósofos gastronomizam.» Gastronomizemos pois. Hoje em dia, toda a gente o faz. Mas continua a afigurar-se-me estranho fazê-lo em Lisboa.
Em matéria de petisco, o lisboeta de gema pende para o peso, não para o requinte. Perante a racional cozinha alemã ou a refinada cozinha francesa, suspiramos invariavelmente pelo calor luso. Tal mania de sabores intensos e molhinhos de refogado deve ter-nos ficado da passagem pelos Orientes. A cozinha europeia parece-nos insonsa. Vejam-se os restaurantes estrangeiros que vingaram por cá nas últimas três décadas. Dos italianos, importámos apenas, por via americana, massas e pizzas. Dos gregos, rejeitámos mesmo o tradicional menu baratinho. Dos russos, fizemos coisa exótica própria de noites de folga. Dos franceses não nos interessa senão o sempre igual entrecosto. Em compensação, aderimos em massa a paladares distantes, desde que mais fortes: africanos, brasileiros, indianos e chineses.
Na realidade, na Lisboa de 1800 existiam duas cozinhas: a do paço e a outra. Ou seja, a dos cardápios redigidos em francês e a que se servia nas tabernas e à mesa do povo. Até que, no último quartel do século XIX, uma geração de intelectuais esclarecidos e de cozinheiros célebres ao seu serviço resolveu fazer, em papel impresso, aquilo que, na prática, há séculos se fazia nos conventos: casar as duas e dar à luz a «gastronomia tradicional portuguesa». Para gáudio de todos [.../...]»
(continua no livro)
de MARINA TAVARES DIAS
«Já é altura de termos um capítulo leve – mesmo quando o jantar é pesado; e consensual – mesmo para quem não queira engordar. Falemos, pois, do mais glosado tema lisboeta: cozinha, culinária ou gastronomia alfacinha. Deixo escolha da palavra ideal à erudição do leitor. Até hoje, através da bibliografia alusiva, ela depende menos de diferenças entre livros do que da data de edição. Existem mesmo textos que, morto o autor, mudam de título para versões mais modernas e intelectuais*.
Como se dizia antigamente, «a conversa chegou à cozinha», ou seja, a elite está hoje na dita como outrora no salão. Veja-se a quantidade de artigos sobre como decorar esta parte da casa que, bem à americana, cada vez tende mais para o estilo sala-de-estar. A frase de Alexandre Dumas é mais democrática e mais actual do que parece: «As bestas devoram, os homens comem e os filósofos gastronomizam.» Gastronomizemos pois. Hoje em dia, toda a gente o faz. Mas continua a afigurar-se-me estranho fazê-lo em Lisboa.
Em matéria de petisco, o lisboeta de gema pende para o peso, não para o requinte. Perante a racional cozinha alemã ou a refinada cozinha francesa, suspiramos invariavelmente pelo calor luso. Tal mania de sabores intensos e molhinhos de refogado deve ter-nos ficado da passagem pelos Orientes. A cozinha europeia parece-nos insonsa. Vejam-se os restaurantes estrangeiros que vingaram por cá nas últimas três décadas. Dos italianos, importámos apenas, por via americana, massas e pizzas. Dos gregos, rejeitámos mesmo o tradicional menu baratinho. Dos russos, fizemos coisa exótica própria de noites de folga. Dos franceses não nos interessa senão o sempre igual entrecosto. Em compensação, aderimos em massa a paladares distantes, desde que mais fortes: africanos, brasileiros, indianos e chineses.
Na realidade, na Lisboa de 1800 existiam duas cozinhas: a do paço e a outra. Ou seja, a dos cardápios redigidos em francês e a que se servia nas tabernas e à mesa do povo. Até que, no último quartel do século XIX, uma geração de intelectuais esclarecidos e de cozinheiros célebres ao seu serviço resolveu fazer, em papel impresso, aquilo que, na prática, há séculos se fazia nos conventos: casar as duas e dar à luz a «gastronomia tradicional portuguesa». Para gáudio de todos [.../...]»
(continua no livro)
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